sábado, 17 de março de 2012

Dominical II *

Um dia , antes da chuva
espalhei lírios pelo chão da casa,
acendi velas pros santos de gesso,
enchi de água e de respeito a quartinha de exú.
Saudei-os. Rezei velhas cantigas, Benzi-me.
Tudo isso, num dia, antes da chuva.

Cortei as unhas, me cortei fazendo barba
(nada demais),
perfumei a cicatriz de outrora,
com cheiro de madeiras e âmbar,
debrucei sobre a janela
um silêncio poetizado ao sol,
tão fundo,
respirei ao leito, minhas preces,
tão poucas, aos santos moucos

tudo isso, num dia, antes da chuva

Deixei o vento invadir minha saudade,
desde o cigarro aceso ao abajour aceso,
nossas roupas limpas secando à sombra,
da cama em desalinho ao cabelo desgrenhado
do pulso cortado ao porvir descalço
antes da chuva, num dia só, tudo isso.

Os olhos semi-cerrados, miudinhos
fingindo não ver, do outro lado da rua
alguém sentado embaixo da amendoeira
contando nos dedos seus dias de sol,
ou mesmo, fingindo não ver
a pessoa que pára, lê a matéria e não compra o jornal.

Da varanda, antes da chuva,
vendo a vida tão postiça,
lembro dos santos de gesso,
de minhas preces poucas
quando eu ainda não me era
ou quando nem sei se fui
ou de quando em vez pensava ser.

Isso era domingo, antes da chuva!


                                                                   

                                                                              * referência ao texto Dominical de Dani Santos
                                                                              http://poemices.blogspot.com.br/

4 comentários:

  1. Bem, primeiro devo dizer que seu comentario no divagações me deixou perplexa, estarrecida, emudecida e que mais adjetivos eu puder usar para descrever a mistura de espanto, agradecimnento e contentamento. Obrigada,

    Sobre o Dominical II, vou contar algo sobre mim. Poesia para mim tem 3 níveis: as que eu leio, as que eu imagino e as que sinto o cheiro. Enquanto lia, me veio o aroma das flores, da chuva de água de cheiro e de velas. Uma delícia, obrigada por isso tambem.

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  2. Veio-me um aroma funesto de um abutre voraz e liquefeito.
    Ainda bem que ninguém me entende.
    Somos feitos só para o insolúvel
    só para o questionável.

    E você, meu belo transeunte da iniquidade
    derrama-se
    pertinaz e solto; quase que perfeito
    sem cheiros e sem águas de velas.

    Puta que me pariu!
    Sou belo, inofensivo ou escroto?

    Você cresce como um balão inflável e sem olores
    Como um filho balsâmico que gostaria de rever.

    Caraca!
    Estás estirprando o ínfimo átomo do meu eu.

    Mande-me pro caralho
    e aceite-me.

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  3. E se não fosse domingo amanhacendo, e se nao fosse chuva, e se nao fosse o parto? conjecturas do vazio, dos vapores sem memórias, do tempo roto que faz chover quando ainda é primavera. reticências, reticências. só o silêncio amanhece a gente, Fran. com ou sem domingos amarelados, tecidos por galos em poleiros tb de gessos. feito santos.

    Gracias pela presença, pelo gesto, pela estrada que sempre se abre com ares de festa.

    beijos, beijos, cor de silêncio. Só porque foi num domingo.

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